Com os Burros N’Água -Parte 1

Jurema de Avellar
10 min readJan 25, 2021

POR JUREMA DE AVELLAR

Foto de Ricado Esquizel no Pexels

Tereza entrou em casa com raiva. Era evidente o semblante contrariado. Como isso tinha acontecido? Como Darcy, sua melhor amiga há mais de vinte anos se atrevia a tal comportamento? Um absurdo!

Diná, a mãe, aproximou-se recolhendo o brinquedo impiedosamente chutado. O que acontecera, Deus meu?

— Darcy arranjou um namorado! — respondeu Tereza.

— Mas ela não é livre, ora essa? — retrucou a mãe.

— É separada do marido, mãe.

A raiva era quase palpável.

— E o que você tem com isso? Deixa a moça ser feliz. Cuida da sua vida. O seu marido está lá dentro, com seus filhos.

Pois aí estava a grande questão: Darcy não podia se dar ao luxo de voltar a viver, sorrir de novo, ter brilho nos olhos. A vida conduzira as duas moças muito próximas. Estudaram na mesma escola, moravam na mesma vila e num espaço curto de tempo haviam se casado, perdido os respectivos pais e ambas partilhavam seus segredos. Eram quase irmãs.

O destino aí traçou caminhos diferentes: Terezinha, como era tratada, casara-se com Alcides, moço educado, gentil, e com ele tivera dois filhos, Paulo e José Luís. Darcy se casara com Eriberto, trabalhador, festeiro, genro estimado como um filho por Berenice. Mas Darcy não conseguira levar a termo suas gestações e após a terceira tentativa, diante da impossibilidade, decidiram juntos terminar o casamento.

Deprimida, a moça sofrera bastante na época, mas voltando ao trabalho numa grande loja de departamentos, voltara à sua vida quase normal, seguira em frente.

Ela e Tereza continuavam a convivência e nos fins de semana botavam os assuntos em dia . O seu infortúnio, embora já atenuado, alimentava o dia a dia de Tereza, que ouvia suas confidências e suas frustrações sentimentais. Darcy não percebia nem de longe a vaidade e o conforto íntimo que suas revelações produziam na outra, falha de caráter bastante comum no ser humano. Jamais notara esse comportamento, esse lado obscuro e por isso não tinha demorado, depois de anos de solidão, a revelar aquele sentimento tão belo, que devagarinho entrara no vazio do seu coração, machucado, mas ainda vivo. Com certeza a moça pensara que Terezinha tinha sido sincera ao parabenizá-la. Refazer sua vida fora um ideal a que ela fizera jus. Berenice, sua própria mãe, que tinha o ex genro em alta conta, suspirara de alegria com a notícia porque só o trabalho não preenchia a vida da filha.

Alcides amparou naquela noite a inquietação e a dor de cabeça da mulher.

— Você não deveria estar contente? Cada um tem o direito de procurar sua própria felicidade. — observou ele.

Mas ela não concordava. Como Darcy tivera a ousadia de esfregar na sua cara aquele olhar açucarado, de adolescente, algo que ela mesma nunca mais poderia reaver. Com dois filhos em crescimento, aquele marido lerdo, cordato e certinho, sentia-se como se tivesse âncoras penduradas no pescoço para sempre. No fundo era uma pessoa invejosa, indolente e preguiçosa. Explorava a natureza ativa da mãe, escapando sempre que podia dos serviços domésticos, sem o menor pudor.

Decidira-se após passar a noite revirando-se na cama: sorriria para a agora ex amiga como se nada houvesse sabido, mas considerava a atitude dela a maior ingratidão. Onde mais iria ouvir lamúrias, onde mais iria matar a sua fome de tristezas e saudades, tão facilmente levadas aos seus ouvidos?

Oswaldo Pereira e a mulher Virgínia eram antigos moradores da vila. Simpático , chegara a conhecer o falecido pai de Tereza. Há alguns anos, antes do casamento da moça, comprara terras na região serrana, uma pequena “fazenda”, como gostava de dizer. Ele e a mulher faziam viagens ao lugar e de lá traziam, na velha kombi, frutas da estação, como mangas, bananas e jabuticabas. Certa vez, olhando da janela do quarto de cima com o filho mais novo no colo, Terezinha vira Virgínia trazer cheia de alegria belas goiabas, que Diná, agradecida, convertera em deliciosas compotas.

Durante meses Virgínia acompanhara o marido, sempre feliz, mas de uns anos pra cá nunca mais voltara ao lugar, preferindo ir visitar a filha casada que residia em São Paulo. Todos haviam reparado que agora o dito fazendeiro fazia as viagens sozinho. Alguém um dia, o ouvira comentar:

— Sítio dá muito trabalho, muita responsabilidade mas tem lá suas compensações…

Num fim de semana Berenice, mãe de Darcy, e Virgínia, mulher de Oswaldo, se estranharam dentro do mercadinho e deixaram de se falar, o que deixou Diná, mãe de Tereza , muito aborrecida. Lamentava que duas senhoras vizinhas, esbarrando-se constantemente, tivessem tido aquela atitude , mas cuidava de sua vida, já que a filha, o genro e os dois netos consumiam todo o seu tempo e suas forças.

Mas Darcy tirara o marasmo de sua vida, vivendo agora livre e alegre como um pássaro fora da gaiola, desfilava nos fins de semana com seu novo amor, cheia de jovialidade. Isso para Terezinha era como um soco no estômago. Não havia mais tempo para conversas e confidências. Isso a consumia.

E aí voltou seu olhar para a residência em frente a sua: sabia dos sonhos da “amiga” de viver em meio à natureza desde os tempos de escola e um plano se formou em sua mente.

O vizinho tinha sido um bom amigo de seu pai, Virgínia dera todo o apoio e ajuda à viúva sua mãe, próximos tinham sido naquela época difícil. Ele era dono de uma fazenda apenas hora e meia da cidade e não seria má ideia fazer-lhe companhia num final de semana.

Soprou nos ouvidos da mãe e uma bela fornada de empadas surgiu naquele dia. Quando prontas, longe das vistas da mãe, arrumou algumas num prato descartável e foi para a porta esperar a chegada do vizinho fazendeiro.

O ruído da kombi era inconfundível e minutos depois ele chegou em casa. Aproximou-se então e exibindo seu melhor sorriso estendeu-lhe o prato:

— Boa tarde, seu Oswaldo! Como vão as coisas lá na fazenda? São empadas quentinhas, mamãe acabou de fazer para o senhor e sua senhora.

Ele olhou-a admirado e agradeceu. Conhecia as habilidades culinárias da mãe dela. Ergueu o guardanapo e meteu logo uma na boca, sorrindo por entre as massas farinhentas.

— Delícia! Muito obrigado, agradeça à sua mãe. — comentou, estranhando toda aquela simpatia repentina.

— Qualquer fim de semana Alcides e eu queremos conhecer. — ela emendou.

— Seria um prazer, claro. Apareçam. — completou enquanto abria o ferrolho do portão.

Entrando em casa disse a si mesmo: os vizinhos estão todos curiosos e viu sobre a mesa o recado da esposa: “ Vou visitar a Tia Nair e só volto à noite. Boa viagem.” Melhor assim” pensou ele olhando o prato de empadas. Enfiou-se no chuveiro , tomou um rápido banho e saiu com o cabelo grisalho molhado sobre a testa, o que lhe dava uma aparência de índio. Vestiu-se , pegou sua velha bolsa, as empadas e menos de uma hora depois estava já ao volante da sua velha kombi barulhenta, tomando o rumo da saída da cidade.

Já na estrada lembrou do encontro com aquela moça. Aquela história era falta de assunto. Ela era um pouco metida e quem iria querer passar um fim de semana sem televisão, sem novelas, sem tantas coisas que trazem conforto? Fazia meses que não via o rapaz casado com ela: ele mesmo saia cedo, o outro mais tarde e nos fins de semana nunca estava em casa. Bobagem !

*******

Na manhã seguinte, diante da ainda cheia de sono “amiga” Darcy, Terezinha contou em pormenores o “convite” recebido.

— Imagine só, um fim de semana inteiro só de diversão. Alcides está todo animado e as crianças mal podem esperar.

Trazendo uma bandeja com o café recém coado, Berenice, a mãe, perguntou surpresa:

— Mas o seu filho não tem escola? O seu Oswaldo viaja às sextas feiras.

— Alcides vai comprar as passagens para sábado. Iremos no primeiro ônibus, já me informei. Falei pro seu Oswaldo: cavalo para mim tem que ser bem manso. O tempo para a próxima semana vai ficar firme e vou tomar coragem, não volto sem um banho de cachoeira.

Darcy tomava o café contagiada pelo entusiasmo.

— Que bom amiga, aproveitem bastante. Tragam fotografias! Quem dia, todos esses anos, o seu Oswaldo nunca convidou ninguém. Dona Diná vai também?

Neste momento o telefone tocou e Darcy pulou para atender, cheia de ansiedade. Atendeu e mandou um beijo no ar, se despedindo, totalmente enlevada noutra conversa, um instante antes de se jogar no sofá brincando com os pés no ar.

Berenice recolheu as xícaras e acompanhou Tereza até a porta. Ela saiu meio decepcionada: os foguetes não estouraram como previra e irritara-se com os conselhos e cuidados recomendados por Berenice, altamente ridículos.

*******

— Você praticamente se convidou — repreendeu-a Diná quando ela voltou para casa naquela manhã. E ainda foi espalhar pros outros. Culpei os gatos pela falta das empadas e olha só! Não somos nem nunca fomos íntimos assim. Isso foi muito feio. Se o convite tivesse partido da Virgínia eu não diria nada. Mas nem seu marido sabe… falando nisso, vá cuidar das camisas dele neste fim de semana pois estou cheia de dor nas costas. E preciso de coisas do mercado!

Mas a cabeça da filha estava longe . Diante do marido, contando a boa nova ouviu:

— Ele nos convidou mesmo? Apareçam é uma palavra gentil mas muito vaga…

— Já consultei a previsão do tempo, vai estar limpo e você tem que comprar as passagens, talvez o mais novo possa ir no colo. Se anima, vai. Não damos um passeio faz muito tempo. Preciso comprar umas roupas para a crianças, uma calça comprida nova para mim e, como mamãe não vai, vou levar o xale dela, as noites podem ser frias lá.

O marido ficara ouvindo e balançou a cabeça. Quando ela punha alguma coisa na cabeça não tinha jeito. Não podia nem mesmo conversar como o vizinho pois eles nunca se encontravam. Talvez a sogra pudesse fazer uma sondagem. Falou com ela naquele domingo, longe da mulher.

Diná quando saía dava uma olhada para a casa da frente, seria uma boa ideia conversar com Virgínia, mas as janelas estavam sempre fechadas e no final da tarde, quando a filha ia buscar as crianças na escola ela estava sempre sobrecarregada de serviços.

E assim a sexta feira chegou. Oswaldo como sempre entrara em casa, ficara lá por uma hora e saiu na sua condução resfolegante. Por trás das cortinas Diná o viu, sabia que Virgínia não o acompanhara. Talvez fosse o momento de conversarem mas o telefone tocou e ela esqueceu-se do assunto.

Naquela madrugada quatro passageiros inquietos, por motivos variados estavam prontos para entrar no ônibus.

A viagem começou naquela manhã cheia de sol. Alcides, influenciado pela mulher, dissera alguma coisa. Ainda se sentia incomodado pelo fato de comparecer a casa de uma pessoa sem antes conversar com ela. A paisagem era típica, a estrada excelente, talvez estivesse se preocupando à toa. Os meninos a cada curva perguntavam — Estamos chegando? Era natural, estavam ansiosos.

*******

Já dentro da rodoviária depois de uma hora e quinze minutos de viagem, olharam a sua volta.

— Virão nos pegar. Esperei o seu Oswaldo na quinta feira e disse que estaríamos aqui — ela dissera.

Realmente foi o que ela disse ao vizinho toda sorridente naquela tarde, sem perceber o olhar o olhar espantado que dele partira.

Meio desconfiado, Alcides carregando a pesada mala, resolveu pediu ajuda. Saíram da parada procurando na rua movimentada que se abria a sua frente, indagando a quem podia: — Conhece a fazenda do seu Oswaldo? Até agora só negativas. Voltou-se para a mulher e perguntou:

— Qual o nome da fazenda?

De repente o menino mais velho gritou:

— Olha lá a kombi do seu Oswaldo!

Realmente um pouco adiante, na rua cheia de gente indo e vindo, lá estava estacionada a kombi. Tinha uma faixa verde que a diferenciava as outras. Levando a bagagem, a família acercou-se dela com um suspiro de alívio de Alcides. O veículo era o certo e o seu motorista empurrava para dentro, no banco da frente, o que pareciam ser partes de um motor e alguns sacos. Voltou-se ao ouvir a chegada ruidosa da família. O patrão havia lhe falado algo a respeito, mas deixara no ar uma dúvida. Afinal, como ele mesmo dissera, não tinha feito nenhum convite formal e não tinha certeza sobre aquela vizinha amalucada, subitamente chegada a ele, e seu marido, que ele não via há muito tempo. Mas deixara a seu cargo as decisões: — Faça o que achar melhor mas não espere mais que o necessário.

— O senhor trabalha na Fazenda Colibri? — perguntou Alcides enquanto esticava a mão educadamente.

O motorista apertou a mão estendida enquanto pensava: Parece boa gente esse jovem mas Fazenda Colibri é novidade. E respondeu:

— Meu nome é Gomes. Vocês estão indo pra casa do seu Oswaldo, não é?

Tereza já havia aberto a porta lateral e as crianças entraram como dois foguetes, carregando suas mochilas. O marido puxou disfarçadamente a mulher, apresentando-lhe o motorista que ela havia ignorado. Ela estendeu uma mão mole e voltou a atenção para os filhos, entrando no veículo e acomodando-se.

— Por favor, posso guardar a mala lá atrás? — dizia o marido.

O homem abriu o fundo. A mala entrou, dividindo espaço com dois garrafões de querosene. Bateu a porta com estrondo e retornaram ambos.

— Você vai na frente Alcides! — disse Tereza.

— Desculpe madame, mas tenho umas peças de motor lá e seu marido vai aí com a senhora.

E lá Alcides se acomodou. Gomes entrou, bateu a porta e ligou o motor sem ver ver a expressão contrariada dela. Guiando quieto, ouvia os planos, os comentários, para não dizer ordens, e cada vez mais surpreso ficava. Quase fora da cidade parou, desceu e voltou logo depois com um engradado com quatro frangos vivos. Acomodou de qualquer jeito sobre o monte de ferro ao seu lado e prosseguiu viagem. Estava achando tudo muito estranho mas não era pago para dar palpites.

As crianças bateram palmas ao cruzarem um rio e Alcides sorriu ao ver o contentamento delas. Saíram da estrada asfaltada e agora sacolejavam numa de terra. Numa curva viram por entre as copas das árvores um telhado velho, perdido dentro da paisagem. A moça olhou e pensou: casarão mal assombrado. O destino final deve estar logo lá na frente.

Gomes levou o carro mais devagar, rente a uma cerca de arame farpado e de repente virou a esquerda. Mais alguns metros e o freio foi acionado bem diante do casarão.

********

--

--

Jurema de Avellar

Nasceu no Rio de Janeiro em 1941. Aprendeu a ler antes dos seis anos e escreve desde os sete. Dona de casa, mãe e avó, encontrou na escrita sua expressão.