Com os Burros N’Água — Parte II

Jurema de Avellar
8 min readFeb 1, 2021
Foto de Brett Jordan no Pexels

Bem, não era exatamente uma fazenda, mas não era nem de longe o lugar que acalentara os sonhos da mulher no banco de trás, estupefata.

— Chegamos! — anunciou o motorista.

Estavam diante de um casarão descascado, remendos de cimento aqui e ali, janelas altas, algumas com vidros. quebrados. Havia chovido durante a noite e o chão estava barrento.

Os pequenos não enxergavam nada além daquela vastidão verde e pulando por cima dos sapatos novos da mãe, lançaram-se à liberdade. Antes que pai e mãe pudessem dar um grito sumiram atrás da construção.

Gomes desceu e sem palavra começou a retirar o que trouxera da cidade: a mala, carvão, os dois garrafões de querosene e o engradado de frangos. Alcides saiu, a esposa logo atrás e o mais humano naquele lugar por ela reconhecido foi o coqueiro cheio de cocos. De volta ao volante, Gomes esticou o pescoço e falou calmamente.

— Aqui é a casa do Seu Edinaldo. Agora, esse negócio aí de colibri, me desculpe madame, senhor, não sei o que é.

Ligou o motor, deu ré, manobrou e voltou por onde viera, deixando o casal com cara de “cachorro que cagou na igreja”.

Mudos, petrificados.

Calada como nunca se lembrava de ter ficado, Terezinha não tinha o que dizer. Na sua imaginação, que deixara correr solta, estaria agora diante de uma bela casa avarandada, em meio a jardins floridos e pomares bem cuidados. Olhando a direita estariam vendo vacas, cavalos, cercados de galinhas, lagos de patos e a esquerda, lá parada, uma charrete colorida, com um belo cavalo atrelado.

No seu estupor, deu-se conta que já não ouvia as vozes das crianças. O pateta do marido conduzia a mala e as mochilas dos filhos na direção do que um dia fora uma porta decente. Era um pesadelo!

— Paulinho! José Luís! — aquela não era sua voz. E para o marido continuou- Aonde você está indo com nossas coisas, idiota?

O marido estacou no umbral e olhou para trás.

— Estamos na fazenda, ora.

— Nossos filhos sumiram. E agora?

Ele seguiu em frente entrando na casa. Quando retornou forçou um sorriso conciliador e disse:

— São garotos, estão correndo por aí.

As mãos dela temiam de raiva. Não podia acreditar. Olharam ambos para o outro lado e descobriram, tão espantado quanto eles, um garoto preto de uns doze anos, meio acanhado, como se a qualquer momento fosse sair correndo diante da histeria que havia presenciado. Tereza foi a primeira a falar.

— Quem é você? Meu deus, aonde estão meus filhos.

O menino se aproximou desconfiado.

— Meu nome é Francisco, me chamam de Chiquinho. Seus filhos estão lá embaixo, subindo na goiabeira.

— E onde está todo mundo? — ela lutava para se refazer.

— Entra madame, Vou ajudar a reacender o fogo para esquentar água. Fogão de lenha ou de carvão, a senhora escolhe.

Ela levou as mãos a garganta.

— Lenha, carvão, que conversa é essa? E pra que água quente?

— Ué, para depenar os frangos, gente — respondeu o garoto.

Alcides já entendera a situação: a esposa fora vítima de sua própria imaginação. Claramente havia ali um grande mal entendido, mas não tinha a mínima ideia do que viria pela frente.

— Calma Tereza, o menino veio nos ajudar.

— Ajudar? Eu nunca cozinhei galinha na minha vida e eles estão vivos!

O menino interveio:

— Madame, eu mato se a senhora quiser.

Ela pensou em desmaiar como via nos filmes e novelas, mas por mais que se esforçasse não conseguia. Neste momento as crianças voltaram cheias de alegria, os olhos brilhantes.

Chiquinho era esperto. Estava diante de moça da cidade, que não sabe fazer nada direito. Pegou o engradado e seguido pelos garotos e o pai entrou na casa, dirigindo-se a cozinha.

Vendo-se sozinha, a moça deu os primeiros passos com as pernas bambas. Se aquilo era uma casa ela era um burro voador. Encontrou toda a família em uma enorme cozinha. O fogão era inacreditavelmente grande e os azulejos que restavam nas paredes eram do tempo do Império. Alcides puxou um banco de madeira e a fez sentar. Percebeu, com misto de horror e alívio, que os dois frangos já tinham sido mortos. Em volta havia panelões e vasilhames de barro onde facilmente alguém poderia se sentar dentro.

— Madame, é melhor tomar um copo d‘água.

Rapidamente o menino pusera o fogão a queimar em altas labaredas e sobre elas a maior chaleira do mundo.

— Chiquinho — disse ela com voz chorosa — vá buscar o seu patrão.

— O patrão? Ele ficou lá na cidade. Virá mais tarde com as meninas. — e mostrando as prateleiras — Tem tudo aqui que a senhora quiser: arroz, feijão, fubá, sal, a…

— E o que eu vou querer? — ela estava quase chorando.

— Que meninas? — indagou Alcides.

O garoto sorriu maliciosamente e continuou:

— Ali tem alho, cebola pendurada atrás da porta e aqui tem banha de porco.

A água começou a ferver e diante das crianças lotadas de curiosidade, os frangos foram parar dentro do alguidar de barro cobertos pelo líquido fervente. Diante daquele enorme vasilhame de barro, esquecidos os pais da presença das crianças, começaram a puxar as penas das aves sobre aquela mesa que seguramente dez homens foram necessários para pô-la no lugar. Sem saber o que fazer, o marido ajudava, olhava a destreza do garoto e copiava.

Era um pesadelo, aquilo não era verdade.

— Ó gente, vamos andar depressa, daqui a pouco vocês e as crianças vão ficar com fome — falou Chiquinho. Tereza ignorou e disse:

— Alcides, vamos voltar para a cidade.

— Sem a kombi? — perguntou o menino.

O cheiro das penas na água quente era insuportável. As crianças, por alguma razão tinham deixado a cozinha.

— Mas … não tem cozinheira neste lugar? — Tereza insistiu.

— Tem, é a Rosa. Minha mãe. — respondeu o garoto.

Recuperando a esquecida arrogância ela gritou:

— Então vá busca-la !

— Hoje ela está aparando criança em outro sítio. Ela é parteira! — e olhou orgulhoso para o Alcides.

Ele compreendia o absurdo que estavam vivendo mas não era sua a culpa. Ajudou Chiquinho a carregar e despejar fora a água e as penas. Sobre a mesa ficaram os frangos pelados, ainda com pés e cabeças.

— Agora pega o sabão pra dar banho neles. — instruiu o menino.

— Sabão?

— Ué, tem que lavar pra depois temperar.

Deus, pensou a moça, por que não caio dura aqui mesmo neste momento. O marido que só a vira chorar no enterro do pai veio em seu socorro. Na pia igualmente grande esfregou os bichos , começando ele mesmo a entrar em pânico pois teria, juntamente com os filhos, que comer aqueles defuntos. Nesta hora o filho mais novo mostrou a cara na porta.

— Mãe, estou com fome.

Diante de Tereza e Alcides, sobre aquela gigantesca mesa, os frangos aguardavam lavados.

— Espetos de churrasco! — ela gritou de repente — Espetos! Anda menino, onde é que estão os espetos?

— Madame, a senhora não vai abrir e tirar as coisas?

A mulher parecia agora querer agredir o Chiquinho.

— Calma !— interveio o marido — Como se faz isso?

Chiquinho estava estarrecido. Nascido e criado naqueles cafundós, nunca tinha lidado com gente assim.

— Já sei ! — ela gritou de novo. — Vá buscar o Gomes. Ele dará um jeito de nós irmos embora.

— O Seu Gomes está lá na cidade consertando um motor. Eu vou mostrar como a minha mãe faz.

Outra caneca de água do filtro de barro desceu pela goela, agora de ambos. Os meninos, já de volta, estavam bastante interessados no desenrolar da futura refeição. Os frangos eram os atores e desempenhavam bem o seu papel, Alcides era o contra regra, as crianças eram os espectadores, Tereza era Maria Antonieta e Chiquinho era o maestro e diretor daquela ópera bufa.

Já na panela, os ditos ganharam sal e cebolas mal partidas e descascadas; ás três horas os quatro se debruçaram sobre a carne; Chiquinho na primeira chance sumiu no mato, deixando para trás aquela família maluca. A necessidade os obrigou a descobrir pó de café e açúcar e, por milagre, alguém tropeçou num embrulho onde dois pães de forma se escondiam. Estava sendo mais difícil explicar aos filhos onde tinham ido parar os cavalos garbosos dos quais a mãe lhes falara.

Mais tarde o querosene se exibiu, mostrando a que viera e depois da experiência terrível que fora encontrar o banheiro, Alcides acendeu todos os lampiões achados. A visão da bacia onde todos presumivelmente deveriam se banhar enterrou todos os sonhos de Tereza, agora refugiada com a família no quarto maior do casarão. Ela abriu a mala e espalhou a roupa que trouxera para os filhos cansados e sujos, mas ainda achando que tudo valera a pena, se deitarem para dormir.

O silêncio era doído, o ódio roncava no estômago fraco da moça arrogante. Recusara-se a comer o que ela própria ajudara a fazer. Tinha trazido roupas novas, um belo e elegante conjunto que iria usar tomando vinho perto da lareira. Ao invés disso, descobriram chá e apesar do mau humor, o marido já fizera três vezes para ela.

Ouviram o ruído da kombi chegando: finalmente talvez pudessem ir embora. Mas lembraram-se que devido ao adiantado da hora, dificilmente conseguiriam passagens para voltar para a cidade. Se encheram de coragem para chegar até a sala e falar francamente com o dono daquele pardieiro.

Estacaram ambos. As risadas femininas estavam sendo ouvidas assim como os passos pesados do dono da “fazenda”. Ele estava visivelmente “alto”. Ficaram parados olhando a gaiatice do vizinho, sendo amparado por duas mulheres vestidas vulgarmente e maquiadas feito palhaços de circo. Oswaldo lhes mordia os pescoços, os braços e mais o que podia alcançar. Ao vê-los soltou uma gargalhada rouca enquanto lhes apontava o dedo; era um bebum com certeza.

Alcides não sabia o que fazer naquela saia justa, mas as acompanhantes do anfitrião resolveram o problema, empurrando o beberrão para um dos quartos e batendo a porta.

— As meninas — balbuciou Alcides.

A casa não tinha forro, toda a estrutura do telhado ficava à mostra e tudo que se passava no cômodo ao lado era perfeitamente ouvido no deles, incluindo aí um sonoro e robusto peido do feliz garanhão. Os risos rasgados das “meninas”, suas idas e vindas ao banheiro e a cozinha, tudo perfeitamente registrado, tornando o casal e os filhos reféns da noitada. A farra foi até alta madrugada e o “canhão” era acionado com precisão.

Alcides pulou a janela, urinou num tronco de árvore e procurou na kombi as chaves. Não estavam lá! Retornou pelo mesmo caminho.

Pela primeira vez na vida Terezinha temeu o marido. Enfurecido diante daquele quadro ele avivara a luz do lampião e passara-lhe uma raspa como ela nunca havia imaginado.

— Olhe só onde sua cabeça ôca nos trouxe! Nem podemos reclamar, ele é o dono da casa. Por sua causa passamos a noite no seu puteiro!

Os primeiros raios de sol piedosamente findaram aquela noite. Conseguiram abrir a porta da cozinha, recolher as roupas e tudo o mais das crianças e saíram pé ante pé para o terreno, refugiando-se no veículo estacionado adiante. Tereza queixou-se para o marido por estar apertada.

— Vá mijar atrás daquela árvore antes de clarear . — disse ele sem a mínima pena.

Sem escolha ela foi. Quando estava voltando, bem a tempo, lá vinha caminhando pela entrada do sítio o Seu Gomes. Olhou a cara inchada da mulher, o semblante amarelado do marido e os protestos das crianças, todos descabelados, amarfanhados e impacientes: puxou do bolso a chave extra e entrou no carro. Deu a partida e fizeram todos o trajeto em silêncio. Na rodoviária desceram quatro passageiros de cara feia.

— Na próxima — falou o motorista — procurem saber mais sobre os colibris!

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Jurema de Avellar

Nasceu no Rio de Janeiro em 1941. Aprendeu a ler antes dos seis anos e escreve desde os sete. Dona de casa, mãe e avó, encontrou na escrita sua expressão.