FALO NA ARTE

Jurema de Avellar
8 min readMay 29, 2021

POR JUREMA DE AVELLAR

Acordou com o sol no horizonte. Diante de seus olhos via o mar aberto. O mar do litoral de Pernambuco, o mar da amada cidade de Recife, cidade esplendorosa. A esposa entrara no quarto lembrando-lhe o compromisso.

— Mas hoje é sábado!

A mulher não lhe dera atenção: continuava a por ordem no quarto com a eficiência costumeira. Ele ouvia lá na cozinha murmúrio de vozes e ruído de louça. Pensou melhor ao perceber o aroma convidativo que vinha de lá e caminhou para o banheiro. Que susto! Era mesmo ele no espelho, com aquele ar cansado, o cabelo levantado em cima, mais parecendo um galo da serra? Fez alguns arremedos de ginástica, terminou a higiene, encolheu a barriga e voltou ao quarto. Ela continuava guardando coisas e esticando a colcha da cama. Ele remexeu a gaveta a procura de algo que finalmente encontrou. Ela falou então:

— Vá parando aí, benzinho! — ele tinha nas mãos a sunga. E continuou — Hoje nós temos um compromisso, lembra? Tia Débora e a Solange estão bem queimadas e pensamos que é o dia ideal para visitar aquela exposição de arte, as esculturas do…

— Ora, eu trabalhei cinco dias na semana e você esta insinuando que eu vou perder a minha praia nesta bela manhã?

— Temos visitas! Elas viajaram de Petrolina para…

— Me encher o saco! — completou o marido.

A mulher correu a fechar a porta e disse:

— Francamente, às vezes os homens são tão grosseiros e egoístas! — guardou a peça na gaveta, tirando em seguida calça e camisa, colocando sobre a cama, dando assim por encerrado o assunto.

O marido olhava o mar azul esverdeado, o movimento dos banhistas já chegados e o colorido dos guarda-sóis.

— Deus me livre se a tia Débora ouve a sua reclamação. Não se esqueça que a Solange é uma boa irmã; vê se aparece na mesa do café sem tromba! — ela avisou.

Na cozinha ele encontrou um ar de festa que acabou por contagia-lo, abrindo seu apetite diante do bolo de milho muito bem feito pela tia Débora. Elogiaram seu carro novo e o apartamento confortável . Com o ego valorizado, conformou-se e atreveu-se a perguntar:

— De quem é essa exposição e onde fica?

— Do artista Felício Durand — sua esposa pronunciou o nome como se fosse de um santo. — Fica no Alto do Ingazeiro ou na Várzea, perguntaremos pelo caminho.

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Desciam no elevador e Aderbal, aproveitando um breve momento em que estavam mais próximos arriscou:

— Tem ideia do tamanho desta viagem ou vai querer mostrar o estado?

— Já me informei de tudo: temos que atravessar um rio em uma balsa que fica à disposição dos visitantes. E para de reclamar, poxa! Um pouco de cultura não vai te fazer mal.

Enquanto manobrava o carro pensou que no fundo variar de programa era uma boa e a praia estaria no mesmo lugar quando voltasse. Aborreceu-se ao dar de cara com uma estrada de terra. Em pleno 1978, no meio da cidade, isso era um absurdo. Havia marcas recentes de outros veículos naquela direção e seguiu em frente, animado pelas mulheres.

O rio cor de barro não era muito largo naquele ponto e a dita balsa fazia seu serviço de transporte. Depois de trancar o carro, ele desceu a pequena ribanceira onde a mulher e a irmã lutavam para amparar a gorda tia. Finalmente os quatro passageiros embarcaram. Ele acompanhava o trabalho estafante do homem protegido apenas por um velho chapéu de palha, agarrado ao cordame, estufando os músculos, obrigando com sua força a travessia.

Era um espaço enorme, um recinto grandioso, todo em tijolos aparentes colocados sob uma caprichosa linha de trabalho, o que já era em si uma arte. Na verdade era o aproveitamento de uma velha e desativada olaria. Uma fabrica onde se destacavam também altíssimas paredes caiadas de branco num belo contraste com a exuberância de plantas ornamentais , trazendo um verde luminoso ao conjunto. Houve um murmúrio de vozes femininas e palavras entrecortadas de satisfação, provocando olhares reprovadores de outros que lá estavam, sustando assim o entusiasmo do outro grupo.

O chão era recoberto por uma cerâmica diferente, bastante elogiada. Alguém comentou que decoradores de várias partes do país a reconheciam como algo novo e estiloso, um novo estilo de arte, algo quase intimidador.

Uma funcionária em trajes padronizados apareceu oferecendo um cafezinho. Solange estava entusiasmada por um grupo de peças e opiniões foram trocadas em tom de voz baixo, como o ambiente “clerical” pedia.

Cruzaram com duas senhoras, que ele julgou reconhecer suas caras de jornais da cidade. Elas usavam joias e deviam estar com muito calor, pelo exagero das roupas, visto o tremendo calor que já fazia. Caminhavam e tomavam notas sem ruído, parecendo estar no interior de um templo. Ele começou a se distanciar dos demais, para dizer a verdade não tinha prestado atenção nas esculturas propriamente ditas. Começava a se sentir enfadado, pensando na sua revista de assinatura quem nem chegara a abrir; ela dormia no banco do carro, recebida das mãos do porteiro quando saía.

Mas — aquele pinguim, não o vira um pouco antes perto da janela? Pensando bem, aproximou-se — é um lagarto! Foi mais adiante comprovar, rodeando a peça. Esse aqui é lagarto, com certeza mas, que diabo… reparando melhor…

Foi interrompido pela irmã:

— Mano, se você tiver trazido o talão de cheques, eu acabei de ver…

— Esquece! — foi categórico.

Bolas, sou algum palhaço? Conheço essa conversa mole, essa aí nunca mais vai ver a cor do meu dinheiro. Colocou os óculos, enxergaria melhor com ele e poderia reparar nos detalhes. Opa! Estou vendo coisas? Circundava mais de uma vez cada obra ali exposta. Esse bicho aproximava-se de formas humanas. Descobriu algo decorativamente e estrategicamente pregado ao , diríamos, ao centro. Buscou na memória: cravo! Sim, era um cravo, tal qual aqueles que haviam pregado o Salvador na cruz, de acordo com o que se lembrava do suas aulas de catecismo quando garoto. Voltou ao outro pinguim, ou seja lá como se chamava aquilo e o indefectível objeto devidamente cravado lá estava.

Ergueu os olhos procurando localizar a esposa, coisa difícil naquele salão gigantesco. Por sorte ela vinha em sua direção. Observou outra peça- sujeito criativo esse — era um lagarto, mas, passou o lenço na testa, lagarto com bico de tucano? Sou um cretino ignorante — sua consciência gritou — aqui estou eu criticando o que não entendo, afinal é arte, seu idiota. Mas onde se meteu a mulher? Mas aquela tartaruga ali com aquele grande pino encravado bem no …

— Querido, há um setor do outro lado tão interessante, cheio de peças menores! Podemos nos juntar, a gente pode se perder nesse lugar gigantesco, sem guias…

Ele não lhe deu ouvidos e se afastou, empenhado em pesquisar a fundo o que se desdobrava diante dele. Podia rodear todos os trabalhos , observar por diferentes ângulos e tirar suas conclusões.

Perdendo de vista o marido, Marlene viu o número de visitantes aumentar e tentou voltar por onde viera. Olhou o altíssimo teto tentando se orientar.

Ele continuava resolvido a entender aquele quebra cabeça artístico, aquele mistério de formas, e cá para nós apreciava, o tão decantado bumbum: vê-lo misturado a horríveis répteis a ele parecia um enorme descalabro. Ficou mais alguns minutos analisando as obras mas suas associações começaram a chegar sempre nas mesmas conclusões, o que o divertia e intrigava ao mesmo tempo. Resolveu então procurar a mulher.

— Marlene! — sua voz retumbou naquela estrutura monumental, trazendo ecos sonoros e alcançou não o objeto buscado mas as duas mulheres esnobes que ele havia notado antes, fazendo-as vir ao seu encontro em passos rápidos, com expressões inamistosas e repreensivas.

— Meu caro senhor, não está num estádio de futebol! Tenha sensibilidade para apreciar as preciosidades aqui expostas. — uma delas falou.

— Perdoem-me ! — ele respondeu e pensou: vacas.

Virou-se para o outro lado e começou a caminhar na direção dos grupos recém chegados. A esposa, a tia e a irmã deviam estar por ali. Foi atraído por outras esculturas de maior porte, em tons de cinza e algum alaranjado, lembrando vagamente altas torres. Torres? Reajustou os óculos e ergueu o olhar. Aquilo lhe lembrou um velho conhecido, porte altivo, petulante, jeito agressivo e orgulhoso. Não esqueceram nem mesmo de cobrir sua cabeça com um chapéu coco, ou seria um boné afrancesado, uma mistura de estilo talvez…

Divisou agora por entre as formas o trio familiar num minucioso exame a um conjunto, assim a ele pareceu, de louças gigantes. As duas mulheres que tinham chamado sua atenção, pareciam até irmãs siamesas, estavam de volta, também próximas.

Ele se aproximou da tia Débora e logo todos começaram a falar ao mesmo tempo pelo reencontro. Vendo que as duas mulheres já estavam se dirigindo ao grupo com as expressões de censura que ele já conhecia, resolveu se antecipar:

— Quero lembra-las senhoras, que não estamos em um igreja. Acostumem-se ou ignorem o eco impossível de ser contido. — disse ele antes que elas abrissem a boca. — Vamos embora, gente!

— A fuga é a resposta dos néscios. — uma delas falou.

Engolindo o pito recebido ele se voltou, contendo a raiva desencadeada e se aproximou daquela que lhe falara, segurando sua mão e trazendo-a com ele para junto da enorme “torre” diante da qual estivera. Tudo isso sob as expressões embasbacadas das outras mulheres.

— Tem razão — começou. — Me portei indevidamente, assim como o meu grupo; sou um ignorante em se tratando de arte. Mas acredito que a senhora está pronta a me incluir neste mundo fantástico de beleza plástica do qual eu, pobre infeliz, me mantive afastado.

E foi se dirigindo exatamente para o local onde estava exposta a peça dominante, a mais robusta. A mulher tentava sem sucesso soltar sua mão. Parecia ter sido acometida por um mal estar, um princípio de pânico em virtude da situação criada, aparentemente amigável, porém firme. As outras alcançaram os dois, protestando e dando até bolsadas, mas Aderbal manteve-se irredutível e conseguiu levar a “prisioneira” frente a frente ao senhor em questão, o Belo, o Arrogante.

— Poderia me explicar o que essa obra representa? — ele perguntou a ela.

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No carro, a caminho de casa, todos mantiveram-se calados, contritos. Aderbal fazia as curvas em alta velocidade e dava freadas bruscas. Um pensamento martelava sua cabeça enfurecida.

— Mas aquela peça parecia com um #%*#%*, lá isso parecia!

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Nota: Essa divertida crônica foi baseada em experiência pessoal da autora, na ocasião no estado de Pernambuco, em decorrência a uma visita a monumental exposição das obras do reconhecido artista brasileiro Francisco Brennand (1927- 2019), conhecido internacionalmente, mostrando sua visão artística absolutamente singular. Somos nós brasileiros tomados de orgulho e respeito na contemplação a sua relevante obra.

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Jurema de Avellar

Nasceu no Rio de Janeiro em 1941. Aprendeu a ler antes dos seis anos e escreve desde os sete. Dona de casa, mãe e avó, encontrou na escrita sua expressão.