Mente Aberta

Jurema de Avellar
10 min readApr 30, 2021

POR JUREMA DE AVELLAR

Foto de Sonja Maric no Pexels

Sempre conferia seu cartão com certo menosprezo, não se considerava um sortudo ( a vida lhe ensinara) , mas naquele retângulo de papel da firma onde estavam os números escritos rapidamente por um colega de trabalho, havia algo de familiar, embora duvidoso. Uma sensação incômoda lhe agitava o coração, descia estranhamente pelo estômago e subia de volta à garganta. “Tolice, Argemiro.” O medo e o mal estar persistiam, um enjoo tão forte que não conseguia engolir o café… Decidiu-se afinal, dirigindo-se ao banheiro.

Escolheu o último reservado e trancou-se enquanto puxava o papel dobrado, envergonhando-se da própria atitude, Jogava tantos números, misturava placas de automóvel, multiplicava e dividia notas fiscais, o bicho do dia, o aniversário das crianças… ESTAVA LÁ! Parecia impossível, mas estava lá, diante de seus olhos esbugalhados, da sua cara de idiota, da testa cheia de suor, tudo sustentado precariamente por suas pernas bambas. “Melhor se sentar” e ao fazê-lo ouviu gente entrando. O sanitário próximo foi usado, a válvula acionada e ele reconheceu o Teófilo pela cor da roupa.

— Aí cara, tá demorando. Daqui a pouco o Evaristo reclama…

— Tô de piriri — respondeu.

— Deixa eu te dizer uma coisa: primeira vez que vejo alguém cagar sem arriar as calças — e saiu rindo.

Ouviu o barulho da porta se fechando. Se ficasse mais tempo ia pegar mal. Saiu e olhou a sua cara no espelho: parecia a mesma. Só teria que parecer natural, passar a mão no paletó e rumar para a saída com total e absoluta naturalidade, o que quase conseguiu, até chutar sem querer a cesta de papéis da Sueli.

Sol! Maravilhado com o sol de quatro e meia da tarde e de bem com a vida, chamou um taxi.

— Toca para o Jardim América meu chapa! Sem pressa, dê uma volta por Copacabana, Ipanema, sei lá!

O motorista olhou pelo retrovisor, era uma corrida e tanto. Mas como dizia sua vó “ araruta tem seu dia de mingau.”

O passageiro procurou nos bolsos ansioso e logo depois com grande pânico, pois o dinheiro não ia dar nem pra metade. Durante toda a viagem ia se dividindo em dois: o rico e o pobre; o segundo mantivera seu estômago embrulhado e o primeiro gritava-lhe agora “imbecil, és um homem rico, por que todo esse cagaço?”.

Chegou e a esposa apareceu no portão:

— Meu deus, aconteceu alguma coisa?

— Dulcinéia, você gastou o dinheiro que te deixei de manhã? — perguntou enquanto entrava em casa, a esposa em seus calcanhares, sem entender nada.

Despachou o motorista.

— Precisamos conversar, é coisa séria — começou.

— Tá tremendo, melhor tomar essa água com açúcar…

— Não precisa, eu…

— Já sei, foi pra rua! Eu esperava por isso, virou moda nesse país. — e virou goela abaixo o copo de água adoçada.

— Nada disso! Vou falar, mas para de me interromper, pô!

— Tenho que pegar os gêmeos na escola e já estou em cima da hora. Já que chegou cedo, a máquina de lavar enguiçou, então se mexe porque aqui não tem aquela moleza do escritório.

Teve vontade de berrar com a mulher que saía: compro duzentas iguais! Porém era bom sentir-se dono único de tão grande segredo. Imaginou todas as formas de dar a notícia: querida, somos milionários! O melhor mesmo era esperar a criançada dormir. Afinal os planos seriam muitos e o mais importante era o sigilo. Sigilo? A palavra lembrou-lhe o fato irrefutável que eram as línguas desenfreadas das famílias, especialmente da própria esposa.

Engraçado como pela segunda vez viu-se refugiado no vaso sanitário, parecia que as ideias fluiam com mais clareza e até…

— Pai, preciso usar o banheiro.

Uma casa maior! Uma casa bem grande era a primeira meta, com um banheiro para cada membro da família.

Desprezou a sopa do jantar e foi à padaria. Voltou com uma garrafa de vinho e duzentos gramas de presunto. A esposa o aguardava:

— Está com mania de grandeza? O que deu em você hoje? O taxi foi uma nota, esconde-se no banheiro de cinco em cinco minutos e agora pretende tomar um porre? Como é que vai chegar no escritório amanhã?

— Para de falar um pouco e escuta: estamos ricos!

Caiu um pesado silêncio; agoniado, ele esperava a reação dela, fosse qual fosse. E como uma bomba de efeito retardado, ela surgiu na forma de virar o copo de vinho todo de uma vez. Aí então balbuciou incrédula e feliz:

— Ricos?

— Ricos!

— Nunca mais vou precisar economizar até no papel higiênico?

— Já está exagerando; nunca falei para economizar papel…

O marido tirou-lhe o segundo copo, Dulce jamais aguentara bebida alcoólica. Viu-se diante de um ser inseguro, transmudando-se logo a seguir em euforia e felicidade, num retorno imediato a um comportamento comedido e ressabiado. O vinho fora uma ideia infeliz e o café forte chegou depressa.

Voltou a sua memória uma história contada por seu avô: um homem encontra no meio do deserto o Livro do Destino. O guardião disse a ele que só dispunha de um tempo mínimo medido na ampulheta de cristal para mudar e acrescentar bens a sua vida. Mas, invejoso e mau caráter, folheou repetidas vezes o livro em busca de seus inimigos, gastando assim o tempo precioso para buscar a própria felicidade.

— E a escola dos meninos? Arrancar assim no final do semestre? E o Júlio está indo tão bem… como vai ser?

— Confesso, não tinha pensado nisso.

— Telefonamos para mamãe e pra Alzirinha, contamos tudo e…

— Acordamos às duas da manhã com a tua família arrombando a porta! Ficou biruta? A última coisa a fazer é contar pra alguém que entrei nessa grana preta.

— Miro, você tá pensando em não pagar pro meu irmão o empréstimo da reforma da cozinha?

— Que empréstimo? Sustentamos o seu irmão e aquela mulher metida dele quase um ano. Ou será que o vinho apagou sua memória?

A mulher o olhou contrariada. Detestava lembrar deste período.

— Vamos começar de novo. Amanhã você volta ao trabalho?

— Aquele escritório “roscofe”?

— De que jeito você vai explicar? Podem desconfiar.

— Você tem razão. Voltarei como se nada tivesse acontecido, seguro um tempo, falto aqui, falto acolá e me mandam embora.

Dulcinéia tinha agora uma expressão sonhadora. E disse:

— Vou precisar chamar a mamãe para …

— Pela última vez Néia, ninguém pode saber!

— Então o calote do meu pai é certo?

Argemiro já estava furioso.

— As pessoas costumam desaparecer, desaparecer, está me escutando, quando pinta uma quina. Estamos presos com o colégio das crianças e também porque não quero “levantar a lebre”. Outra coisa perigosa é o sequestro de filhos se houver cheiro de dinheiro. Vou pagar a “mixaria” do teu velho, não precisa me jogar na cara, se é isso que está te azuletando.

— A “mixaria” te salvou na hora…

Inacreditável! Milionários a poucas horas, mil projetos e sonhos enfim podendo ser realizados e eles discutiam. Dulce passou outro café e os dois tomaram numa espécie de trégua.

— Continua tudo na mesma, voltarei para o trabalho por mais um mês, daí invento uma desculpa , pago o teu pai e nos seguramos mais sessenta dias, sei lá.

— E eu continuo com a máquina de lavar remendada, o vazamento do banheiro, o muro sem acabamento, ar condicionado prometido no ano passado…

— Dulcinha, presta atenção: nessas coisas eu darei um jeito. Pense no futuro e certamente ele não é aqui nessa casinha medíocre e nem nesse bairro. Vamos ter paciência e logo, logo teremos casa nova, automóvel, colégios particulares pra nossos filhos, viagens de férias…

— Argemiro — ela estava emocionada — vi tudo como num filme, ai, ai! Amanhã vou comprar as bicicletas dos meninos e posso aproveitar para passar naquela loja de lingerie cara que tem no …

— Ainda não tenho nenhum dinheiro, dá pra esperar vinte e quatro horas? E teria que pedir a tua mãe para olhar os meninos… Põe na tua cabeça que temos de aparentar vida normal!

— Mesmo sendo milionários temos que levar essa vidinha miserável por sei lá quanto tempo? Saiba que a minha mãe seria capaz de guardar este segredo.

— Não esse!

— Qualquer um!

“Lá vamos nós, de novo”, pensou Argemiro. Na noite em que apostara tinha dormido o sono mais tranquilo de sua vida. Agora estava tendo um pesadelo!

No dia seguinte chegou ao trabalho atrasado, olheiras, roupa desleixada, em nada poderia lembrar a figura de um homem sem problemas financeiros. Mas, ao contrário do que esperava, sentiu-se tomado por uma alegria infantil cada vez que encarava os colegas. “Eles não sabem!”. Até mesmo a crítica polida e firme do chefe de seção com respeito à sua gravata provocou-lhe uma vontade incontrolável de rir e como uma saída refugiou-se no banheiro. O sanitário transformara-se de uns tempos para cá no seu lugar preferido. Sossegado, podia contar e recontar a grana, fazer e desfazer negócios, aplicar ou não aplicar, algo realmente delirante. Perdera a concentração no trabalho e também o apetite, levando os colegas a recomendarem cuidado com alguma gripe a caminho.

Os planos eram mirabolantes, ideias novas não faltavam, assim como hábitos nem sempre saudáveis, como tomar champanhe no café da manhã. O marido era complacente nessas ocasiões, difícil segurar toda aquela expansão. A mulher contratara duas empregadas e mudara não só o estilo de vida, como também a cor dos cabelos.

A grande tortura eram as visitas dominicais a casa dos respectivos sogros, quando então tornava-se vigias implacáveis de cada palavra dita. Ao sair tinham a desagradável e incômoda sensação de terem parecido “ diferentes”. Os comentários eram formulados pelos parentes: “Argemiro está mão aberta, na certa ganhou um aumento, mas naquela droga de emprego?” . Ou então “Dulcinéia está se sentindo uma artista com esse corte de cabelo!”

Ninguém poderia supor o que havia acontecido, afinal nada mudara durante aquelas semanas, tirando é claro, as bicicletas, o videogame, a nova máquina de lavar, o freezer, a secadora, a nova televisão, as cortinas ( tentara convencê-la do contrário) e o guarda roupa moderno que ela adotara. Parecia uma locomotiva sem freios e para não se aborrecer, ele deixava de lado.

Finalmente ele foi demitido e resolveram comemorar a liberdade comprando um carro. As coisas estavam esquentando.

— Esse traste ? — a mulher perguntou e apontou em outra direção.

Enxugando o suor da testa, ele aplicou-lhe uma discreta cotovelada, não tão discreta aliás, porque a fez perder o equilíbrio, sendo amparada prontamente pelo vendedor. “Como pode um homem desempregado andar com um carro desses?” cochichou no ouvido da mulher. Fechou negócio num Chevette bege e humilde. Nem mesmo a algazarra das crianças fez passar o mal humor da Dulce, e quando, desajeitado, esbarrou no portão da garagem, ela não lhe poupou uma risada de deboche.

Restavam exatamente dezenove dias de escola e Miro se sentia afogado, acuado, meio imprensado, sabe-se lá a palavra. Havia um sem número de casas e apartamentos visitados e apalavrados. Uma montanha de corretores de coração apertado na expectativa de comissões, mas era difícil conciliar os gostos. Naquela manhã discutiram muito o assunto e ela dissera:

— Vai ver e depois me leva para resolvermos!

Parecia o certo e ele passou a manhã rodando no mundo imobiliário, deslumbrando-se aqui, maravilhando-se ali. Rodava em Ipanema e resolveu que era hora de parar e comer alguma coisa.

Degustava uns salgadinhos enquanto bebericava uma cerveja, com todo aquele magnífico visual diante de seus olhos e melhor de tudo, de graça. Pediu outra rodada e deixou o tempo passar naquele começo de tarde; quando saíssem daquele bairro teriam condições de morar de maneira condizente com a nova situação. Roupas novas, trocar o carro ( ia dar o Chevette de presente para um amigo), Dulcinéia ia tirar a carteira… Viu seus filhos bem alimentados, entrando em ônibus escolares, fazendo cursos de línguas. Fim de semana à beira mar ou nas montanhas; ou mesmo os dois!

— Outra geladinha? — o garçom perguntou.

Aceitou, mandando trazer mais camarão. De repente aquela pontada no meio do estômago: todo segredo já teria ido por água abaixo! O que ia aparecer de gente atrás de uma “casquinha”… Se desse sopa para a família da Dulce teria que dar para a sua também. Naturalmente podia esperar por certas grandes despesas: o aparelho de correção da afilhada, aquele idiota do cunhado com a mulher , sempre enfeitando a varanda, , os sogros dando palpite, os…

Fechou os olhos e imaginou um barco todo branco, todo seu e tão longe a miragem o levou que chegou a sentir o suave balançar das ondas. Maravilha! E elevou o copo espumante. Isso sem falar na sacanagem, pois homem endinheirado pratica entre outros esportes, os jogos de duplas! Mulher bonita no Rio de Janeiro não falta!

O garçom trouxe a conta. Deu uma generosa gorjeta e agradeceu. Deteve então o garçom pela manga da camisa e perguntou:

— O que você faria se de repente, de repente mesmo, ficasse rico?

O empregado coçou o queixo por um momento, olhou para o mar azul, tornou a coçar dessa vez o princípio de calvície e respondeu:

— Levando em conta a mulher que tenho, o berreiro das crianças, a lonjura onde moro e a minha sogra, picava a mula doutor, e nunca mais ninguém ia por os olhos em cima de mim.

Foi sua vez de mirar o imenso mar azul. Interessante como as pessoas simples funcionam bem da cachola, como dizia sua mãe. Que absoluta lucidez!

***

Chovia muito quando Dulcinéia, o irmão e o pai atravessavam as ruas do centro, furtando-se às poças d’água, enquanto o pai dizia:

— Pode deixar filha, pode deixar. Mais dia, menos dia pegamos aquele patife e os teus direitos estão assegurados!

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Jurema de Avellar

Nasceu no Rio de Janeiro em 1941. Aprendeu a ler antes dos seis anos e escreve desde os sete. Dona de casa, mãe e avó, encontrou na escrita sua expressão.