O CARROSSEL

Jurema de Avellar
3 min readApr 20, 2021

Por Jurema De Avellar

Foto de Faaiq Ackmerd do Pexels

“Preparemo-nos para o frio”

Era a ordem. O indicador mostrava à direita a queda como grande sinal. Escovar lãs e peles, armazenar vitaminas e a incrivelmente grande colmeia se mexia. Gravava-se o Verde nos eletrônicos, marcava-se a hora e a época. O fogo de tons azulados subia para aquecer e aconchegar; quem vivia em estágio Y podia tê-lo em espirais ou também para outros de N, subidas eletronicamente controladas por notas musicais.

O estágio era importante: tirava ou dava oportunidades em uma subida sinuosa, nem sempre disputada por muitos, mas carregada de seriedade. Mel e Gordura juntavam-se com sabor agradável, auxiliados por XR-9 e ao final da temporada, o concurso premiaria a melhor fórmula sólida, o melhor líquido enriquecido. Festas eram então promovidas, contemplados os vencedores e aplaudidos os mais fortes, mais despidos de emoção.

No estágio F estava Mirna ( 3.306.608), batalhando com seu clã. O que era ambição? Procurava se recordar dos escritos antigos, pois não encontrara nenhuma fita. “Coisa MENOR”, expressão usada e muito comum entre os de seu grupo.

Surgiu a grande Luz, o Sol. Desligavam-se os eletrônicos, havia sol, calor. Chegava rápido o novo tempo das alegrias e esperanças e Mirna sorria para o indicador em ascensão e continuava o trabalho. Polir escudos. Polir, polir, polir… sem descanso.

O Carrossel monstruoso girava e fazia suas paradas. Subiam muitos, desciam outros e alguns se perdiam naquela viagem ao redor do planeta. “Escudos Novos! Escudos Novos!” E os de seu clã partiam no giro incessante por ela aguardado entre mil tarefas. E seus cabelos cresciam, mudavam de cor, seus olhos voltavam mais vivos, mais ávidos. Ouvia risos, seu clã ria satisfeito com o Novo.

E o tempo do Aprendizado estava de volta. Lá se iam em seus trajes, sonhando desprenderem-se de F e Mirna lhes dava razão.

— Suba no Carrossel, 3.306.608, suba!

— Não posso. Noutro tempo. Preciso polir escudos.

O indicador declinara muitas vezes, o Mel tinha que ser garantido, o clã preparava suas reservas. Afinal o Aprendizado era a cada giro mais depressa, não tão rápido quanto o Carrossel, ou seria? Estava confusa…

— Suba, venha também!

— Falta pouco, em outra parada quem sabe…

E o Planeta era circundado, deixando em seus lugares de origem os correspondentes devidamente graduados. Mirna espantou-se com as mudanças operadas em seu clã: adquiriram dimensões diferentes, com machos adquirindo pelos, barbas, musculatura saudável. As fêmeas tornaram-se opulentas, bustos agressivos, olhos claros e iluminados.

— Faremos a Grande Prova — disseram.

Deixavam cair entusiasmo, felicidade e Mirna “roubou” uma fatia tão esbanjada e apenas essa sobra lhe serviu de alimento. Era na verdade mais do que poderia esperar. Mas não sorriu quando mais alto que sua cabeça lhe comunicaram:

— Estamos indo para L , vamos ficar separados.

— É o que querem? Estão felizes?

— Estamos.

“Também serei eu”. E recolheu mais uma pequena fatia.

Ela olhava agora o Grande Carrossel no qual nunca tinha entrado, do qual somente ficara à espera. Muitos acenos, rostos conhecidos, porém de olhares tão penetrantes, luzidios, às vezes faiscantes, que precisava usar as duas mãos para se proteger. Subiria no outro, se apresentaria ao Conselho e embarcaria no próximo, era uma decisão. Sentia-se solitária e a tarefa de polir ia sendo feita sem o antigo vigor, lentamente, quase não alcançando o estipulado. Iria sem dúvida e veria a outra Face. Sairia de F com sua contribuição, nada a dever mas algo a cobrar.

— Não pode subir 3.406.608. Perdeu todas as paradas, não aguentaria o giro supersônico.

— Mas tenho direito, quero ir!

— A contagem se fez e você não acompanhou. Suas pupilas são por demais opacas. Trabalhe. Volte à Produção.

— Não entendo, o que foi que perdi?

— Tempo. A passagem da Vida.

E então 3.306.608 baixou a cabeça e o Carrossel se foi.

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Jurema de Avellar

Nasceu no Rio de Janeiro em 1941. Aprendeu a ler antes dos seis anos e escreve desde os sete. Dona de casa, mãe e avó, encontrou na escrita sua expressão.