O CASAMENTO

Jurema de Avellar
6 min readDec 20, 2020

POR JUREMA DE AVELLAR

A hora se aproximava e o corre-corre era natural naquelas circunstâncias. A mãe pressurosa acalmava o marido, que bradava por sua privacidade na suíte, ofendido pela intromissão dos parentes. Sua maior insatisfação era a cor do terno, assunto batido e rebatido tantas vezes quantas quisera impor seu gosto pelo tradicional azul marinho. E lá estava o cinza (detestável) que a esposa determinara e nada mais tinha a fazer senão envergá-lo. “Azul marinho fora de moda! Quem já ouvira tamanho disparate!” E essa história dos parentes baixarem na casa pela manhã como andorinhas famintas, não lhe passava na goela.

— Ester, que negócio é esse? — Abrira o armário e por entre sua roupa comprimida sobressaiam trajes femininos cheios de brilhos, apertando suas camisas de encontro às paredes.

— Onde mais poderia pendurar os vestidos da tia Berenice e das filhas? Pare de chiar! Logo, logo o Betinho desocupa o banheiro e será a sua vez.

Continuou a faina, depositando sobre a cama do casal as peças de roupa respectivas, para as costas da cadeira foram camisa e gravata.

— Não vou usar essa aí, gosto mais da outra…

— Esqueceu? Usou no casamento da filha do Alcebíades há quinze dias.

Ia replicar quando o Junior saiu, deixando livre o banheiro. “Bem, essas coisas são assim mesmo” — pensou enquanto a água descia gostosa pelo corpo. “ Com o enlace da Denise só fica o pilantra do Beto e esse não se amarra tão cedo: vai perder a sopa aqui de casa? Precisava ter passado o que eu passei pra …”

Bateram na porta. Desligou o chuveiro e enrolado na toalha saiu. Em dois passos se deu conta, constrangido, que o aposento fora invadido por uma tribo nômade, disputando espaços no espelho, esticando vestidos, trocando opiniões sobre chapéus, etc. Atravessou o quarto e acendeu um charuto junto à janela, pelo jeito sua presença não tinha sido notada e pacientemente, como convinha a um homem educado, ficou à espera, olhando o movimento no jardim. Pessoas iam e vinham e dois de seus netos corriam alegremente junto com outras crianças que não sabia de quem eram.

A mulher discutia agora sobre o tom mais adequado de sombra dos olhos e a seriedade era tal em um detalhe que a ele parecia tão insignificante que imaginou aquele grupo impondo suas ideias num plenário. Olhou o relógio e soltou uma tosse nervosa, um aviso que existia e precisava se trocar. Será que era invisível? Voltou a olhar para o jardim. Chegava um automóvel verde e dele saltaram Laís e Jorge. O ruído da porta do toalete o acordou. Olhou para si mesmo avaliando a precariedade da toalha que o envolvia e continuou esperando. A proximidade da esposa ofereceu-lhe uma chance :

— Calma ! — ela disse. — São só quatro banheiros, o que você queria ? — e voltou ao centro das discussões.

Viu Ester se encaminhando para a porta e por um momento achou que ficaria livre , mas qual não foi sua surpresa ao ver entrar pela porta, sem a menor cerimônia, a empregada, trazendo um monte de telegramas que foram prontamente digeridos. Assim era demais! Tirou da gaveta um velho apito e soprou com todas as suas forças. Aos olhares espantados, avisou:

— Se não saírem em dez segundos, tiro a toalha e danço uma conga!

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O nó da gravata saíra perfeito e tinha que admitir que o terno lhe caíra bem, corte impecável. Topou com as expressões agastadas das invasoras lá fora, devidamente enchapeladas, mas decidiu afivelar a velha máscara dos políticos pós-eleição, ou seja, absoluta indiferença.

Denise estava linda, não que fosse um pai coruja, mas a verdade deve ser dita. Beijou a filha carinhosamente, com uma ponta de comoção a custo disfarçada e mais tarde, sentado em seu carro ao lado da esposa, achou que no final das contas valeram todos os esforços. Gastara bem menos no casamento da Beatriz, mas as coisa subiram e não podia pretender que no ano de 1958…

Tantos abraços, tantos cumprimentos! Fora uma bela cerimônia, um pouco demorada talvez, o padre se esmerara no sermão , ou seja lá como se chame, mas o mais importante é que todos pareciam contentes. O genro ( odiava pensar nisso) não era exatamente um modelo de virtudes: meio trapaceiro, chegado a um pôquer alto, sempre coberto pelo pai , mas pode-se entender a cabeça dos jovens? Encasquetou e seja o que Deus quiser. Tinha sido um noivado de muito respeito: Filha minha não anda na boca do povo! E ninguém podia chamá-lo de sovina pois a recepção seria a altura. Inventaram até novidades como as guirlandas de flores no jardim para a passagem dos nubentes. Preocupara-se mais com a qualidade das bebidas, coisa comentada e muitas vezes malhada nas festas. Com o vestuário também não houvera regateios: os vestidos da mulher e da filha custaram uma verdadeira fábula. Interrompeu o devaneio à cutucada da esposa:

— A metida da tia Carlota está aí atrás na fila dos cumprimentos com as duas filhas! — ela disse.

— Para com isso, serão benvindas ! — respondeu.

— Como a peste! — revidou ela prontamente. Era muito geniosa e nunca topara aquele lado da família. Porém, com um mundaréu de gente reunida na mansão passariam desapercebidas, contanto não inventassem moda.

Muitos já desciam dos carros e como uma enorme procissão atravessavam o jardim engalanado, postando-se à espera do jovem casal. Uma sucessão de ternos, sapatos lustrosos, lapelas enfeitadas, chapéus, joias caras, damas de honra e suas fitas de cetim esvoaçantes. Também ele passou orgulhoso por todo este aparato e avistou as desenxabidas, Ester inventava cada apelido, posicionadas no corredor formado pelos convidados.

O casal preparava-se sorridente para a alvissareira chuva de arroz, iniciada exatamente naquele instante numa alegre algazarra. Algazarra essa que se transmutou em berros, impropérios, seguidos de um formidável corpo a corpo, onde reconheceu, estupefato, a própria filha no seu esplêndido modelo, as desenxabidas, Ester deschapelada e o noivo aflito, fazendo esforços desesperados para contê-las e seu motorista erguendo no ar, sem a menor compostura, a tia Carlota! Como aquilo se deu? Não entendia mais nada e juntou-se sem querer ao grupo inativo e abestalhado dos convidados, enquanto cabelos eram puxados, sapatos perdidos, bolsas voavam naquela estranha e barulhenta coreografia de última hora. Celeste, irmã do Álvaro e conhecida por sua calma e delicadeza, agarrava-se como podia, tentando deter a noiva de grinalda estraçalhada quando de repente escorregou e caiu, soltando um sonoro e insuspeitado palavrão!

O aturdido pai viu então no piso, misturado aos grãos de boa sorte, o motivo de toda aquela loucura: MILHO !

— Jogaram milho em cima da minha filha!!! — E uma fúria destruidora tomou conta de sua alma.

*****

Pela primeira vez, tinha certeza, pisava o solo de uma delegacia. Sentia-se amargurado, envergonhado e mais que tudo ofendido. Talvez as coisas tivessem permanecido dentro dos muros da casa, não fosse aquela pedra de má pontaria vinda não se sabe de onde, atingindo a cabeça do filho do Sérgio, culminando em chamados a hospital e polícia, e no final, belos e bem dados cinco pontos.

— Desculpe senhor, mas poderia fumar mais tarde esse charuto?

Olhou o guarda e assentiu, lutando para manter no lugar o bolso rasgado.

— O cavalheiro sabe — o policial continuou — não é permitido fumar neste recinto tão pequeno e tão cheio, incomoda as madames e uma delas já está enjoando.

“ Enjoando? Quem?” Virou a cabeça e viu espantado Denise como o lenço na boca segurando a náusea iminente.

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Jurema de Avellar

Nasceu no Rio de Janeiro em 1941. Aprendeu a ler antes dos seis anos e escreve desde os sete. Dona de casa, mãe e avó, encontrou na escrita sua expressão.