O Rugido do Leão

Jurema de Avellar
6 min readJan 8, 2021

POR JUREMA DE AVELLLAR

Era um dia comum de março. O amanhecer tinha trazido com ele a claridade naquela rua de calçamento já quase inexistente de terra vermelha, estreita e de pouco movimento.

O farmacêutico abria a porta, usando sua força fazia subir o rolamento escuro. Já agora trabalhava na segunda. Da padaria vinha o cheiro do pão fresco e as primeiras pessoas chegavam. O Virgílio da banca de jornal, já a postos empilhava os jornais recebidos e as revistas de cores vistosas, prontas para serem dependuradas no exterior da banca.

Alguém varria seu pedaço de calçada e mais ao fundo, no bloco de apartamentos antigos e modestos, cabeças surgiam nas janelas recém abertas. No mercadinho, também com as portas erguidas, o dono trazia para fora os caixotes que iriam acomodar as frutas e verduras. Os empregados chegavam agora, já virando e revirando o material que seria colocado, procurando separar os menos vistosos. O primeiro balconista da farmácia acabava de entrar, dando bom dia ao patrão Onofre.

A vida de todos começava a pulsar, cada um tomando sua direção, todos prontos a desempenhar o seu papel naquele dia que despontava.

Mas no meio da via, deitado meio de lado, um corpo masculino se achava imóvel. Usava bermudas, camiseta branca, um boné cinzento e calçava tênis bem gastos.

O farmacêutico Onofre Costa o vira ao chegar, mas sua atenção fora toda para seu negócio.

O padeiro Silviano Teixeira olhara pelo canto do olho e depois esquecera-se por completo. Atendia já os primeiros e apressados fregueses, mães, crianças indo para a escola, já agora com o primeiro funcionário a ajudá-lo.

Da banca, Virgílio, que era o mais próximo lançara dois olhares mas continuava suas atividades; o velhinho sorridente, seu primeiro freguês daquela manhã, ávido pelas notícias esportivas.

Junto ao desconhecido, Piedade juntava as mãos! Do outro lado, apreciando a cena, Indiferença esperava o desenrolar. O sol fizera um esforço para sair, mas recuara tímido ante a barreira de nuvens espessas; o ar estava úmido, a temperatura parecia que seria amena.

Crianças a caminho da escola formaram um grupo, mantendo distância e tentavam matar a curiosidade.

Dona Neide, a primeira a entrar na farmácia, de lá observava a cena.

— Alguém conhece aquele homem?

O balconista esticou o pescoço e balançou a cabeça negativamente. O velhinho, já com seu jornal debaixo do braço, ajeitou os óculos tentando ver o rosto, a fisionomia do caído, mas o braço e o boné do referido impediam melhor visão.

A Indiferença sorriu levemente.

O grupo de crianças voltou à calcada e rumou em outra direção.

Onofre se aproximou da entrada da farmácia e pensou: “ se algum carro entrar na rua vai passar por cima.” Colou o cartaz que levava, pregando-o cuidadosamente com fita adesiva.

Neide esbarrou nele e desceu a rua , desviando-se do buraco na calçada quebrada, olhou para o corpo com uma ponta de interesse … mas marchou para o mercadinho. Piedade tinha os olhos nela , mas sua intensidade não foi suficiente.

Das janelas, as cabeças curiosas e variadas retornaram, algumas revoltadas. Uma pessoa gritou: — Chamem os bombeiros!

Outra rebateu: — Chamem uma ambulância!

João, porteiro do outro prédio mais classe média, do outro lado da rua, olhou para a varanda de onde viera a voz; cumprimentou Dona Efigênia, a moradora. Todos pareciam preocupados mas passavam adiante qualquer tipo de atitude.

_ Alguém tem que tirar esse cara daí. — continuou Efigênia.

— Também acho — concordou o porteiro. Talvez um telefonema…

A mulher sacudiu os ombros e desapareceu. Indiferença sacudiu-se em risos.

Um dos empregados do mercado, munido de uma vassoura, chegou bem perto e usando-a, empurrou primeiro o braço dobrado até o outro lado e depois virou a cara do desconhecido retirando o boné. O corpo aí se abriu, a figura agora era frontal.

Piedade se aproximou e olhou o rosto do homem. Estava sereno, parecia gozar de um sono bom. Mas sua tez parda escondia talvez um tom azulado. Sim, era um homem preto o ser ali esparramado, o boné agora caído ao lado da cabeça.

Reginaldo era morador antigo do bairro e circulava quase que diariamente por aquela rua. Sargento reformado do exército, conhecia quase toda a vizinhança. Veio chegando devagar, parou, olhou e contornou aquele ser humano desvalido, já agora mais de uma hora de ganho de visibilidade.

— Está vivo, está respirando? — perguntou em voz alta, buscando ser ouvido por todos.

O jornaleiro respondeu:

— Não sei, parece mais um preto curando o porre. Talvez esteja “cheirado” .

Da janela do conjunto habitacional veio o grito:

— Encosta a mão no peito dele, ora!

Aquilo era ridículo! Pôr a sua mão limpa naquele corpo inerte, provavelmente sem higiene, em plena rua, a vista de todos, era um disparate! Isso era trabalho para a polícia! E retirando os óculos escuros, tentou localizar a moradora, dona da voz sem noção.

Piedade levou as mãos a cabeça.

Apoiado num beiral, ao lado do mercadinho, Preconceito riu descaradamente. Se o cara estivesse vivo, debaixo de um sol persistente viraria churrasquinho.

Um utilitário entrou balançando na rua prejudicada pelo calçamento escasso e mal cuidado. Diminuiu a marcha e o motorista se esticou diante dos dois homens, um deles de pé. Calculou, subiu duas rodas do outro lado e seguiu viagem.

O militar continuou no mesmo lugar, agora meio cercado por outros curiosos, procurando naquele corpo algum sinal de vida, mas nem pensar tocá-lo.

Gerson morava no fim da rua. Saiu de casa com a única finalidade de jogar no bicho. De longe viu aquele pequeno aglomerado. Uma vizinha que de lá chegava naquele momento contou-lhe o acontecido.

— Está vivo ou morto? — perguntou.

— Ninguém sabe. — ela respondeu — É preto, bolas!

Ignorando o insulto, ele foi descendo naquela direção. Nadador experimentado, era guarda-vidas, fazendo parte do pequeno grupo da praia do Sereno.

O sargento, agora resolvido a deslindar diante da plateia o caso, adotava, cheio de vaidade a impulsioná-lo, atitude de “macho”: deu um passo para frente, abriu as pernas procurando melhor posicionamento e, inclinando o corpo para frente, buscou olhar mais de perto aquele infeliz.

Foi quando Gerson, conhecido como Gerson Negão, chegou por trás e fez com a mão uma tesoura na nuca do militar, empurrando-o com toda a força na direção do rosto pardacento. A coisa se deu tão rápido que só três personagens daquela cena seriam capazes de descrevê-la.

Sob o braço forte do guarda-vidas, o corpo do sargento, na tentativa de libertação executava uma frenética e esquisita movimentação, abrindo caminho para os assovios e comentários maliciosos da assistência. Ninguém mais se interessava pelo referido talvez cadáver, mas sim pelo esfrega-esfrega insólito presenciado por tantos.

Gerson soubera o quanto de gente havia tomado conhecimento daquele incidente sem tomar qualquer resolução de possível socorro.

Preconceito parara de rir, Indiferença se mexeu temerosa e Piedade suspirou fundo.

Reginaldo debatera-se, chutando o ar para todos os lados e ao fim, descobrindo-se deitado sobre o corpo desconhecido, vencido pela pressão e depois de todos aqueles terríveis segundos, conseguira sair e caiu ao lado, deitado de costas. Sentira até mesmo o cheiro do indigente e sozinho, fulo de raiva, erguera-se na ânsia de encher de porrada o audacioso rapaz.

O que se seguiu foi uma grande confusão: o círculo ordeiro transformou-se numa ameba que rebolava, criando formas diferentes para todos os lados.

Com saltos e piruetas, o jovem guarda-vidas esquivava-se dos chutes e golpes tornando a cena grotesca.

Ninguém se entendia e o caso acabou na delegacia. O carro da polícia fora finalmente acionado e partiu levando os dois.

Na tarde daquele dia todos souberam que o militar tinha a garganta ardida de tanto gritar a sua patente, Gerson ficara detido para esclarecimentos e o homem caído fora levado para o pronto socorro. A devida assistência médica atestou cansaço, desidratação e um presumido caso de diabetes. Seu nome era Marcelino dos Santos, soldador, sofrera desmaio em virtude de um turno dobrado e estivera perto de um estado comatoso.

O bicho da manhã fora uma adorável borboleta e da noite um coelho fofinho. O leão que Gerson perseguira passou longe.

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Jurema de Avellar

Nasceu no Rio de Janeiro em 1941. Aprendeu a ler antes dos seis anos e escreve desde os sete. Dona de casa, mãe e avó, encontrou na escrita sua expressão.